domingo, 7 de setembro de 2008

O espelho

um

Era um dia oco e pavoroso como todos os outros. Anna estava com os botões do jeans preto abertos e havia livrado-se da regata verde-musgo. Sentada em uma cadeira acolchoada descansava seus braços nos braços da cadeira azul-índigo. Tão oca (quanto todos os outros dias ocos e pavorosos), fixava os olhos pesados na cena vulgar de dois corpos em estados epiléticos, comendo-se, sujando-se, lambuzando-se numa espécie de catarse sexual catastrófica. Aquilo - aquele ato sem paixão ou transcendência - a enojava. E a repulsa a deixava estranhamente excitada.

Foi o ruído da excitação imprópria que trouxe o ímpeto ocasional de, num instante, tirar do gancho o telefone e discar para o número que ela ouvira apenas uma vez, há duas semanas. Sem detalhes, deixou nome - fictício - e idade. Foi o suficiente para atrair a atenção de boa parte dos participantes do chat de voz. Conversou com alguns rapazes até encontrar Luciano, que descrevia-se como "um coroa com uma disposição invejável para trepar com meninas mais novas".

dois

- Curte um coroa, minha linda?

- Prefiro.

- Ah, é? Que delícia... me fala como você é, fala?

- Claro. Pele clara, 1,72 metro, 62 kg, cabelos curtos, poucos pêlos...

- Maravilha! E o que é que essa preciosidade faz por aqui, hum?

- A preciosidade aqui precisa de bebida e uma boa foda.

três

Ele riu cretinamente como ela imaginou que ele riria. Marcaram encontro para dali a meia hora, tempo suficiente para que Anna chegasse até o local onde Luciano iria buscá-la. Pontual, ele encostou o carro num ponto de ônibus vazio e abriu um sorriso que revelou o amarelado dos dentes gastos. Anna observou-o discretamente enquanto ele punha o carro novamente em movimento. Luciano era um senhor (já avô, confidenciou mais tarde) nada atraente, a princípio. Usava uma camisa de longas mangas e uma calça leve de cor marrom.

Luciano enobreceu a beleza inusual e forte de Anna e educadamente deu-a a liberdade de desistir do encontro ressaltando, em outras palavras, que se a garota não se sentisse "à vontade" com a decadência de seu corpo envelhecido e flácido, poderia pedir que ele a deixasse em qualquer ponto da cidade. "Jogo aberto", disse ele. "Leve-me até a sua casa", respondeu ela. Luciano riu e deslizou a mão direita por toda a extensão da coxa esquerda da jovem. Anna então percebeu que o amarelo dos dentes de seu companheiro era proporcional ao amarelo de sua própria vida. Um amarelo opaco e degradante.

quatro

Chegaram ao apartamento em poucos minutos. A decoração do lugar alternava o clássico e o sofisticado, com quadros e aquários compondo o ambiente de pouca luz. Logo rumaram ao quarto e sem mais perguntas ou qualquer outra coisa a ser dita, Luciano avançou seus lábios finos e murchos em direção à boca de Anna, que correspondeu sem entusiasmo. Ele dirigiu-se até o abajur ao lado da cama e acendendo a luz despiu-se por completo, exibindo a aparência real de um homem em seus cinquenta e oito anos. Anna fez o mesmo e ambos reiniciaram os beijos secos e insípidos. Deitaram-se sobre os edredons escuros e macios explorando sem sutilezas o desconhecido e o que causava saudade.

Anna sentiu-se desrespeitosamente tomada por um rascunho de prazer despertado enquanto Luciano sugava-lhe os seios. Entretanto, foi tão e somente de quatro - frente ao espelho ao lado da cama - enquanto era invadida por um corpo estranho, que Anna percebeu que o prazer era a violência e o feio. A aberração e o nojo como fato consumado.

cinco

Sentou-se, apoiando a base dos pés no carpete. Refletida, observou-se por um breve instante e não sabia descrever-se.

- Posso usar o seu banheiro? - quis saber, ao perceber Luciano de volta ao quarto.

- Claro.

- Se importa se eu me molhar um pouco?

- Vou pegar uma toalha.

Anna moraria sob a ducha quente mas saiu logo do banho. Luciano já estava vestido e ela fez o mesmo.

seis

Beijos, portas, escadas, carro e conversas agradáveis e ele a deixou no centro. Anna saiu do carro desejando as felicidades que verdadeiramente gostaria que Luciano alcançasse. Era uma boa pessoa, o velho. Talvez bom demais para ela, que sentia-se pobre, suja e infernal - exatamente como o centro da cidade forjada.

E estava viva, sentia-se viva como nunca. Pobre, suja, demoníaca e viva; enquanto esperava a redenção.

3 comentários:

Guto Oliveira disse...

Uau! adorei o conto. Super intenso e achei muito sutil a descrição de cores como uma tentativa de minimizar vidas vazias, em busca de sentido. Parabens. Um abraço!!

http://quasepoema.zip.net

Henrique Monteiro Alive disse...

Conto nojento e bem escrito.
E coitada da menina da vida amarelada.
Com os dentes basta um clareamento pago. Mas e com a existência? Como limpá-la?

Robson Schneider disse...

Hmmm pobre Anna, infelizmente só consegue se ver sob uma ótica marginal...isso faz tudo ficar pior.
E vai seguindo alimentando sua culpa de cada dia...