terça-feira, 30 de setembro de 2008

Achado do momento em que procuro

Descansa a vontade
Descompasso incessante
Lapsos a perseguir meu ventre
Brandas chamas - o corpo clemente.
Floresço flor de laranjeira
Displicente e calma
Envelheço em rugas sábias
Assobios intempéries.
(...)
Já não sou Maria
Tão pouco imaculada.
kauana r., de manteiga de kakau.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Primeiras impressões de um vôo raso e desajeitado

Do outro lado eu ainda não me percebo.
Não sei como é ser feliz - estou descobrindo.
Estou des-cobrindo as pessoas e a cara da vida e do mundo real, aquele que pulsa em batidas violentas e sem ritmo.
Eu tenho que ordenar tudo.
Eu que me criei na desordem, na insanidade de um mundo só meu e fundo.
Eu, que queria ter crescido com sotaque.

Aviso

É melhor ser alegre que ser triste
alegria é a melhor coisa que existe
é assim como a luz no coração
mas para fazer um samba com beleza
é preciso um bocado de tristeza
Senão não se faz um samba, não.
baden powell e vinícius de moraes, samba da bênção.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Retrato

Demora tanto, demora tanto pra crescer
Pra depois, de uma hora pra outra morrer
Tem que mamar, tem que comer e beber
Deixar vir e ir sofrimento e prazer
Não há o que lamentar
Quando chega o fim do dia
Um cara que anda tem que chegar em algum lugar
Um cara que trabalha, trabalha, trabalha, deve se cansar
O cara estuda tanto e ainda tem tanto pra aprender
Passa o tempo e fica mais fácil esquecer
Não há o que lamentar
Quando chega o fim do dia
Não há o que lamentar
Quando chega o fim do dia
Se despede da sua dor
Diz adeus à sua alegria
Não há o que lamentar
Quando chega o fim do dia
arnaldo antunes e paulo miklos, fim do dia.

Real life

Need sleep.

domingo, 21 de setembro de 2008

Carta ao meu amor de ontem

'Eu podia perceber um sentido já engajado e latente - um sentido que eu sabia ser o fim mas eu não o planejava.
Eu me desnudei e me alimentei de tudo o que eu não mais comeria.
Eu revisitei discos que já não mais falavam sobre mim - e também deles eu me despedi.
Eu me permiti ser grotesco e inconsequente, e então eu vi surgir o seu itinerário.
Eu queimava. E já não dominava os meus membros, não era dono de meus passos - eu fui levado, entenda. Era destino e eu não sabia, eu não podia perceber. Eu não podia prever e não pensei em lutar - eu não imaginava.
Eu comprei cigarros e vaguei pelas ruas. Eu fui até a sua rua e rondei a sua porta mas eu não chamaria: eu sussurava adeus.
E então eu vi você surgir e só havia em mim o desespero.
Eu vi você andar na direção oposta - a nossa direção foi sempre oposta e eu pude ver.

Eu só preciso que você saiba que o meu amor foi carne e foi espírito.
Foi tamanha a intensidade que eu não pude compreender, entendo que você também não compreenda.
Eu amei mais do que eu pude e mais do que eu devia e sabia.
Eu lhe contei sobre a violência e sobre a falta que fazia o meu pai.
Eu era só uma criança e você foi o meu pai.
Você foi o meu Deus e eu esperei que você trouxesse a redenção.

Me desculpo: o meu amor não conheceu comedimento. Por favor, perdoe-me.
Agora há a liberdade - a minha e a sua.
O amor que era carne e era espírito hoje é transcendental. Há o respeito, o bem-querer e um espaço numa vida e história que não é sua. É minha.
Hoje eu disse adeus. A minha redenção é agora.'

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O gosto da carne

Existiu o fogo em você - ainda que um princípio - ou só a indiferença (intermitente?) que eu vesti de fraude (é que a imagem dela vestida era tão reconfortante!)?
Eu pareço irregular agora.
E no meu desnorteio eu fui um menino de olhos fundos e sorriso triste - eu não sabia sorrir.
Eu não sabia sorrir e estou inconsolável.
Eu estou perdido querida, mas é só um pedaço. É que estou próximo ao ponto em que não duvidarei mais de mim e tenho medo.
Eu tenho medo dos fragmentos de um amor (in)acabado: eu me canso tão fácil.
Eu bebi você e o seu gosto era amargo. Eu provei da sua carne e o seu gosto era suor.
É mentira: eu não comi e não bebi, eu vomitei porque eu pude sentir o gosto mesmo estando longe e com a boca fechada de agonia e o sabor era forte e impróprio. O gosto já cheirava a inadequado.
A minha insensatez era tsunâmica e o meu desapego o meu único bem.
Entorpecido eu quis de novo o impróprio do sabor em minha língua e procurei-o em outras bocas, outros sexos e era tudo falta.
Era tudo um silêncio ensurdecedor e eu emudeci
(Eu queria um pedaço do teu sossego).
Eu amo o teu pé branco e marcado como com a cruz.
E eu amo a chuva porque ela me dói feito vida latente e irremediável, plena e possível.
Chove e eu senti a presença perturbadora do Senhor.
Dorme amor, porque faz frio e amanhã eu tenho que dizer adeus.
Ilustração: maria joão franco.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O estado das coisas

Estou morrendo mas não é nada extraordinário:
eu morro um pouco todos os dias.
Vai,
eu deixo você ir porque o meu amor é espírito.

A oração

nú de joelhos, antoine watteau
Meu Deus, me dê a coragem
Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços meu pecado de pensar.
clarice lispector

terça-feira, 16 de setembro de 2008

(Des)caminho

Vê, amor
Se eu te descaminho é porque o nosso caminho é o outro
Enxerga, enxerga além do que vê
Vê o meu transbordar
Eu não caibo, não
Eu não caibo no mundo porque o meu tamanho é o tamanho de um sonho muito grande
E esse sonho é grande como uma cegueira branca e intensa
Eu só caibo na palma da tua mão
E o meu enxergar é ver nos seus olhos a imensidão do seu desejo
"Vê, e se pode ver, enxerga".

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Trying hard


Eu tô tentando largar o cigarro
eu tô tentando remar meu barco
eu tô tentando armar um barraco
eu tô tentando não cair no buraco
eu tô tentando tirar o atraso
eu tô tentando te dar um abraço
eu tô penando pra driblar o fracasso
eu tô brigando pra enfrentar o cangaço
eu tô tentando ser brasileiro
eu tô tentando saber o que é isso
eu tô tentando ficar com Deus
eu tô tentando que Ele fique comigo
eu tô fincando meus pés no chão
eu tô tentando ganhar um milhão
eu tô tentando ter mais culhão
eu tô treinando pra ser campeão
eu tô tentando ser feliz
eu tô tentando te fazer feliz
eu tô tentando entrar em forma
eu tô tentando enganar a morte
eu tô tentando ser atuante
eu tô tentando ser boa amante
eu tô tentando criar meu filho
eu tô tentando fazer meu filme
eu tô chutando pra marcar um gol
eu tô vivendo de rock 'n roll.
george israel e paula toller, eu tô tentando.
Ilustração: cabisbaixo, joão pereira de matos.

sábado, 13 de setembro de 2008

Transcendental


Eu não sou somente a favor da Guerra do Vietnã, mas a favor de todas as guerras. A guerra é uma empresa saudável, gloriosa. Faz com que os homens sonhem, traz à tona paixões recalcadas, é uma época de esperanças e grandes ilusões. Com isso, com sua intensidade, faz com que a arte, a ciência e as idéias se desenvolvam. Do ponto de vista erótico, as guerras desencadeiam impulsos reprimidos e estimulam a sensibilidade das pessoas. E veja: além de tudo, se houvesse paz o tempo inteiro, nós seríamos vítimas de uma mortal monotonia.
Salvador Dalí, pintor espanhol ao responder a pergunta "Atualmente, acho que você é a única pessoa do mundo a favor da Guerra do Vietnã, não?" feita pela revista veja, em 1971.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Porta aberta

Hoje acordei sem lembrar
Se vivi ou se sonhei
Você aqui nesse lugar
Que eu ainda não deixei
Vou ficar?
Quanto tempo vou esperar?
E eu não sei o que vou fazer, não
Nem precisei revelar
Sua foto não tirei
Como tirei pra dançar
Alguém que avistei
Tempo atrás
Esse tempo está lá trás
E eu não tenho mais o que fazer, não
Eu ainda gosto dela
Mas ela já não gosta tanto assim
A porta ainda está aberta
Mas da janela já não entra luz
E eu ainda penso nela
Mas ela já não pensa mais em mim, não
Ainda vejo o luar
Refletido na areia
Aqui na frente desse mar
Sua boca eu beijei
Quis ficar
Só com ela eu quis ficar
E agora ela me deixou
Eu ainda gosto dela
Mas ela já não gosta tanto assim
A porta ainda está aberta
Mas da janela já não entra luz
E eu ainda penso nela
Mas ela já não pensa mais em mim
Eu vou deixar a porta aberta
Pra que ela entre e traga a sua luz
samuel rosa e nando reis, ainda gosto dela.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Cafés e cigarros

(...)

Vou esquentar o meu frio com um café,
Depois tomar um trago da tua fé.
Sentir calor, nem que seja um cigarro.

Vou esquecer toda essa necessidade.
Joguei ao vento a palavra "eternidade"
E entreguei "paixão" ao seu destino: o escarro.
cinthia lima, só mais um coração seco de 20 anos; publicado em casa dos corações inquietos, de felipe favilla (setembro/2008).

domingo, 7 de setembro de 2008

O espelho

um

Era um dia oco e pavoroso como todos os outros. Anna estava com os botões do jeans preto abertos e havia livrado-se da regata verde-musgo. Sentada em uma cadeira acolchoada descansava seus braços nos braços da cadeira azul-índigo. Tão oca (quanto todos os outros dias ocos e pavorosos), fixava os olhos pesados na cena vulgar de dois corpos em estados epiléticos, comendo-se, sujando-se, lambuzando-se numa espécie de catarse sexual catastrófica. Aquilo - aquele ato sem paixão ou transcendência - a enojava. E a repulsa a deixava estranhamente excitada.

Foi o ruído da excitação imprópria que trouxe o ímpeto ocasional de, num instante, tirar do gancho o telefone e discar para o número que ela ouvira apenas uma vez, há duas semanas. Sem detalhes, deixou nome - fictício - e idade. Foi o suficiente para atrair a atenção de boa parte dos participantes do chat de voz. Conversou com alguns rapazes até encontrar Luciano, que descrevia-se como "um coroa com uma disposição invejável para trepar com meninas mais novas".

dois

- Curte um coroa, minha linda?

- Prefiro.

- Ah, é? Que delícia... me fala como você é, fala?

- Claro. Pele clara, 1,72 metro, 62 kg, cabelos curtos, poucos pêlos...

- Maravilha! E o que é que essa preciosidade faz por aqui, hum?

- A preciosidade aqui precisa de bebida e uma boa foda.

três

Ele riu cretinamente como ela imaginou que ele riria. Marcaram encontro para dali a meia hora, tempo suficiente para que Anna chegasse até o local onde Luciano iria buscá-la. Pontual, ele encostou o carro num ponto de ônibus vazio e abriu um sorriso que revelou o amarelado dos dentes gastos. Anna observou-o discretamente enquanto ele punha o carro novamente em movimento. Luciano era um senhor (já avô, confidenciou mais tarde) nada atraente, a princípio. Usava uma camisa de longas mangas e uma calça leve de cor marrom.

Luciano enobreceu a beleza inusual e forte de Anna e educadamente deu-a a liberdade de desistir do encontro ressaltando, em outras palavras, que se a garota não se sentisse "à vontade" com a decadência de seu corpo envelhecido e flácido, poderia pedir que ele a deixasse em qualquer ponto da cidade. "Jogo aberto", disse ele. "Leve-me até a sua casa", respondeu ela. Luciano riu e deslizou a mão direita por toda a extensão da coxa esquerda da jovem. Anna então percebeu que o amarelo dos dentes de seu companheiro era proporcional ao amarelo de sua própria vida. Um amarelo opaco e degradante.

quatro

Chegaram ao apartamento em poucos minutos. A decoração do lugar alternava o clássico e o sofisticado, com quadros e aquários compondo o ambiente de pouca luz. Logo rumaram ao quarto e sem mais perguntas ou qualquer outra coisa a ser dita, Luciano avançou seus lábios finos e murchos em direção à boca de Anna, que correspondeu sem entusiasmo. Ele dirigiu-se até o abajur ao lado da cama e acendendo a luz despiu-se por completo, exibindo a aparência real de um homem em seus cinquenta e oito anos. Anna fez o mesmo e ambos reiniciaram os beijos secos e insípidos. Deitaram-se sobre os edredons escuros e macios explorando sem sutilezas o desconhecido e o que causava saudade.

Anna sentiu-se desrespeitosamente tomada por um rascunho de prazer despertado enquanto Luciano sugava-lhe os seios. Entretanto, foi tão e somente de quatro - frente ao espelho ao lado da cama - enquanto era invadida por um corpo estranho, que Anna percebeu que o prazer era a violência e o feio. A aberração e o nojo como fato consumado.

cinco

Sentou-se, apoiando a base dos pés no carpete. Refletida, observou-se por um breve instante e não sabia descrever-se.

- Posso usar o seu banheiro? - quis saber, ao perceber Luciano de volta ao quarto.

- Claro.

- Se importa se eu me molhar um pouco?

- Vou pegar uma toalha.

Anna moraria sob a ducha quente mas saiu logo do banho. Luciano já estava vestido e ela fez o mesmo.

seis

Beijos, portas, escadas, carro e conversas agradáveis e ele a deixou no centro. Anna saiu do carro desejando as felicidades que verdadeiramente gostaria que Luciano alcançasse. Era uma boa pessoa, o velho. Talvez bom demais para ela, que sentia-se pobre, suja e infernal - exatamente como o centro da cidade forjada.

E estava viva, sentia-se viva como nunca. Pobre, suja, demoníaca e viva; enquanto esperava a redenção.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Remissão

Eu quis ter voltado ao ventre de minha mãe
(ao menos estaria protegido das angústias
que aqui fora me consomem)
Eu quis ter tomado difíceis decisões
mas por falta de coragem, deixei-as
Quis amar e não pude
Eu quis não ter dito e quis não ter violentado

Eu resgatei um náufrago e afoguei-o
O que mais pode doer se os amigos foram-se e os amores nunca vieram?
Se as oportunidades foram perdidas ou o sol escondeu-se, fazendo do céu um buraco negro e fundo, o que mais pode doer?
Os pecados foram trazidos à tona
Não há nada, vida é vida e por viver devemos saber que há danos irreversíveis
Há o pavor e a loucura e a insensatez
E há a morte, que devemos encarar como ato de bravura, de honradez: a remissão cruel e verdadeira

Ainda que tais palavras não façam sentido quando a luz enfim aparecer (daqui a mil milênios) e os despertadores soarem, há de haver um sensível (ou um perdido) que enxergue além do que nos é jogado nas fuças, além da desgraça intolerável que é um mundo tão frio e superficial, permeado de hipocrisia e desamor (que é a falta, a falta)
Só há o desapego a tudo o que é essencial

Sejamos decentes o suficiente para descermos dos pedestais (desperta), tirarmos a couraça do mau-caratismo, assumir nossas fraquezas sem romanceá-las
Devemos isso a Deus (ao Deus)
Devemos isso aos corajosos, tão pouco apreciados que nem lembramos seus nomes.