quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O ovo

Meio dia (um dia pela metade).
Procuro - ininterruptamente - aquele abrigo.
Vasculho os ponteiros.
Finjo dormir, enquanto a escuridão me descobre: uma sutil descoberta de desapego.
Um sorriso, enquanto todos incompreendem as verdades tímidas.
Me canso, abro espaço para o ódio - o ódio compreende.
Nem as palavras ordenam-se mais, num desespero sutil para desprenderem-se do papel: reflexos de um surto de mediocridade fatal.
Um ser transcendental, um antigo, um míope. Num jogo indecifrável, a minha alma precisava de um corpo: o meu. O seu. Um nosso.

domingo, 24 de agosto de 2008

Ainda

Sua persistência é sádica e cruel.
Estou de quatro, juntando os cacos - cacos tão pequenos.
Cacos de tudo o que eu fui.
A humilhação (a paixão humilha), como um trator, estraçalhou o que ainda ficava de pé - nada mais resta.
Você venceu, era uma guerra.
O amor é uma guerra.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Violação

É da loucura que eu preciso.
A loucura (que outrora me fez sentir vivo)
de que agora sinto falta; como se houvesse morrido
e sido enterrada junto ao amor, que não existe mais - não existe.
Pesa em minhas costas a superficialidade angustiante, a falta de raíz profunda, que esconde nossos rostos e manipula nossos medos, fazendo-nos reféns da imbecilidade de apenas existir - só existo.
Quero meu mundo de amores loucos e amigos próximos.
Quero ser correspondido na medida em que desejo.
E quero não temer (nem aos demônios e nem a Deus).
Eu não pertenço ao lugar de onde vieram aquelas pedras, que aprisionei num jarrinho para contemplar cretinamente enquanto a vida passa.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

O apocalipse

Furacões, tique-taques, sons, câmeras girando em 360º.
Ruas sem nomes, amores correndo de mãos dadas.
Mergulhos na água, nús, sob o sol.
Areia e promessas que nunca foram feitas.
Entulhos, velas.
Velocidade, asfalto, pés, vôo num céu claro. Branco: nas roupas e nos dentes. Cores, em todos os lugares.
Música, guitarras, órgãos, pianos, baixos, violões, baterias, flautas e vozes, todas as vozes juntas.
Almas esparramadas, saindo das bocas dos que cantam.
Infinito
Prédios, fontes espirrando água sem parar.
Homens cavalgando em nuvens, deitados em cavalos de pano.
Sorrisos sem tamanho, sorrisos enormes.
Pessoas rodopiando em meio aos carros, todos parados.
Crianças sobre capotas, cachorros flutuando, bumerangues.
Olhos se abrindo, ouvidos atentos, despertados.
Chinelos andando sozinhos pelas ruas.
Pãezinhos dançando sobre o balcão, roupas fugindo dos cabides.
Lágrimas, gritos.
Chuva subindo em direção ao céu.
Tsunamis e homens de prancha na mão.
Travesseiros espreguiçando-se, elefantes pulando corda, girafas de salto alto, marchando.
Melancias à disposição dos transeuntes, comidas em cada esquina.
Bicicletas exercitando-se sozinhas, máquinas fotográficas registrando o fim do mundo.
Alegrias (muitas) com a chegada de Deus e sua acolhida divina à nossa existência cheia de pecados outrora condenáveis e que não mais existiam.
Ninguém mais tinha problemas para dormir e à noite, Deus juntava-se a nós ao redor da fogueira e contava casos de outras épocas.
As crianças brincavam com leões e não tínhamos mais aversão a inseto algum.
E todos riam quando deitávamos no chão e o céu escuro se transformava em uma imensa tela, como as de cinema, e víamos as estrelas apresentarem espetáculos extraordinários, usufruindo de todas as manifestações da estética e da imaginação.
Os galos jogavam cartas e ninguém mais morria.
Os sonhos eram possíveis e falava-se apenas um idioma. As pessoas todas entendiam o que era dito.
As baleias nadavam no ar e as vacas faziam turismo nos mares com galões de oxigênio.
Não existiam os pesadelos (nem os despertadores). Nem impostos. Nem dinheiro.
Os animais (todos, com exceção das estrelas-do-mar, que eram mudas) falavam e tinham sempre bons conselhos a dar.
Éramos felizes, porque a tristeza tinha sido expulsa de nossos corações, que agora não se pareciam com punhos fechados mas com os desenhos típicos que aprendemos quando crianças.
E antes de se deitar Deus dizia-nos, sempre: "tenham uma boa noite, meus filhos". Víamos a grandeza de seus passos, gestos e palavras poderosas indo dormir, enquanto vagalumes o seguiam até a beirada da cama, onde estacionavam. E sempre havia o dia seguinte.

domingo, 10 de agosto de 2008

Cru

Morde
Meus lábios, meus dedos
Encosta em meu peito
Susurra doce
Me mostra suas mãos
Ou esconde-as onde eu não possa vê-las
Sua pele branca, avermelhada de sangue correndo quente
Minha pele negra, suando paixão em gotas
Gotas minúsculas de desejo
Saindo pra fora enquanto estamos dentro
Me espanta sua volúpia
Espasmos
Gestos involuntários
Pés, pernas, braços, cabelo
Os corpos
Num ato divino
Enquanto no escuro estrelas correm em círculos
Num carrosel de intintos dilacerados
Enquanto somos um apenas, e não dois.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Cuspes, relógios e reflexões

Uma máquina que cospe dinheiro, apelidada de Bárbara e que, apesar de bárbara, é temperamental. Stress, barulho, gente chata e ignorante. Meu trabalho sem paixão (paro e me pergunto seriamente se vale a pena desperdiçar o tempo - que é tão precioso - com algo que não nos desperte paixão). O tempo tem passado (depressa). Eu tenho passado também, estou sumindo.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A água

Bebo do seu corpo tão fresco
Mas minha sede não morre
Bebo da sua alma e me perturbo
Sua água perturba o meu sono
Não durmo, só sonho.